28.3.07

Caso de polícia

O gato miou lá na rua, acendi um cigarro. Uma da manhã e comecei a pensar em ti. o vizinho de baixo acordou assustado e bateu com a vassoura no teto:
- Poema agora não! Tenho que acordar cedo!
Poema agora sim. Daqueles bem melosos, sentimentais, chorosos, que exalam saudade. Daqueles que acordam o prédio todo, a rua, o bairro. Cada palavra é um sono perdido, um olho aberto, uma olhada no despertador. Poema sim. Daqueles que sangram os corações das moças insones e solitárias que vigiam a cidade das suas janelas acesas. Que calam forte nos corações de todas elas: das amadas, das casadas, das viúvas, das amantes.
Escrevi o primeiro verso. Um cachorro latiu. Gritaram, com a voz amassada:
- Larga essa caneta!
Jamais. Segui em frente. Segundo verso, terceiro. Mais e mais janelas se acendiam ao meu redor. Podia ver os cabelos desgrenhados, as caras assustadas se debruçando nos peitorais. Todos e cada um deles querendo saber de onde vinha tão ensurdecedor amor. Lá pelo sexto, chamaram a polícia. Lentos como sempre, mas eficazes na repressão às boas coisas da vida, os guardas bateram na minha porta quando eu terminava o décimo-segundo. Abri, de caneta ainda na mão:
- Pois não? - disse com o meu melhor sorriso
- Recebemos uma denúncia de que há alguém versando nesse apartamento. O senhor é poeta?
- Sou sim. - e segui com ele.
Quando entrei na viatura, tinha a caneta ainda em punho, mas o papel havia ficado sobre a mesa. Senti os olhares que vinham de cima. Vaiariam, se isso não fosse acordar ainda mais crianças, que a essa altura se esganiçavam e levavam terror a pais e mães.
Chegando à delegacia, o delegado não me ofereceu uma cadeira, ou um café. Disse apenas:
- Então o senhor é poeta?
- Sou sim, desde jovem.
- E não tem vergonha de fazer isso a essa hora da noite?
- Inspiração não tem hora, nem melancolia, ou saudade.
Nossa consersa não ia a a lugar nenhum. Eu só pensava na chave de ouro e ele só queria que o plantão acabasse. Mandou-me para casa, mas só depois que eu prometi não rimar depois das dez. Até assinar um papel eu assinei. E ainda ficou com a minha caneta. Voltei para casa e peguei meu lápis. Quem sabe, faz menos barulho.
(Ivan Trindade)