21.7.09

Círculo perfeito

Abriu um olho. Ao ter certeza que estava ali mesmo, abriu o outro. Pegou o relógio em cima da mesinha. Agora sabia onde estava e quando estava. Não se sentiu mais seguro com isso. Mas precisava ir ao banheiro mijar. Rolou para o lado e caiu. Deu tempo apenas de colocar as mãos na frente da cara para não quebrar os dentes. Estava no segundo andar do beliche. Doia o peito, os joelhos, as pontas dos dedos do pé e ainda tinha vontade de mijar. Levantou. Sua cara no espelho do banheiro era a mesma da noite anterior, com algum susto ainda da queda. Mijou, mas não abriu a janela nem ligou a televisão. Só então viu que havia um homem gordo deitado na cama de baixo. Não roncava, como os gordos geralmente fazem. Ainda mais em manhãs quentes. O homem parecia não respirar também, mas ele não tinha tempo. Achou as calças, calçou os sapatos, vestiu a mesma camisa e saiu. A dona da pensão falou algo que ele quase ouviu. Quando saiu porta a fora, ela gritava. Olhou para trás e ela apontava da porta da pensão. Pensou que não deveria ser para ele, que sempre pagava o aluguel em dia. Seguiu em frente. Só quando chegou ao ponto de ônibus, lembrou que estava barbado e que não iria trabalhar naquele dia, ou então chegaria muito atrasado. Precisava encontrar alguém. Uma mulher, ou seu pai, para pedir um dinheiro emprestado. Decidiu ir ver Maria antes e só depois seguir para o abate e a humilhação dos jovens adultos do início do século XXI. Maria não o recebeu bem. Não tirou os óculos escuros, não estava de perfume novo, coisa que sempre fazia quando não tinha certeza de que ele viria visita-la. Não pediu nada a ela, como fazia nos dias de semana, mas também não deu um sorriso durante todo o tempo em que ficaram juntos. Enquanto ela se vestia, fastiada, saiu do quarto no intervalo de um piscar de olhos e pegou o caminho de casa. Resolveu, naquele dia, que iria pegar a rua de trás e que se seu pai não estivesse em casa, arrombaria o escritório e tentaria seduzir a governanta chilena. Mas o velho estava. Como sempre, entrevado, bengala na mão, meio Machado de Assis, meio José Sarney. Um ódio pacífico tomou seu peito e por isso pediu apenas metade do que geralmente pedia. Num esgar de nojo, o velho contou as notas sujas e sorriu. O primeiro sorisso que ganhava no dia. Pensou em voltar a Maria enquanto embolsava a grana. Mas desistiu. Na porta da pensão, uma ambulância, o gordo estava morto mesmo e o acusavam de tê-lo matado. Disse que não, não aceditaram. Ofereceu dinheiro, que aceitaram e foram embora. Subiu para seu quarto e deitou, agora na cama de baixo para evitar nova queda. Ligou na Globo, mas desligou em seguida. Ligou para Maria, mas ela tinha um vestido de noiva para fazer e não poderia até o sábado. Fechou um olho e logo depois outro.
Por Ivan Trindade